Às vezes saio do trabalho com um
cansaço que é fácil de se reconhecer. Já no ponto de ônibus, enfrento o tormento de uma
cidade cotidianamente engarrafada e barulhenta. Enquanto aguardo o transporte,
não entendo por que os ambulantes insistem em vender CD's na opção de demonstrar o
produto no volume mais alto. Ok, penso eu, você está indo para casa, então
relaxe. Tenho a sorte de sentar no transporte coletivo, mas logo sinto que ela
se esvai, porque um suposto hit começa a ocupar todo o espaço sonoro do
veículo, vez que um bonito sentado duas cadeiras à frente se
acha um DJ de buzu. Nessa hora ele poderia lembrar pra que serve um fone de
ouvido.
Você pensa, voltando para casa, que finalmente poderá descansar. Ledo engano. Minha vizinhança é
bastante insistente em tentar entreter toda a comunidade ao redor, colocando
músicas no áudio máximo. Não importa o dia da semana -- de domingo a domingo --
e, pior ainda, não importa a hora.
É uma salada
musical. E não me levem a mal em falar mal. Independentemente de eu gostar ou
não das músicas, o que incomoda, o que irrita profundamente é o barulho.
Eis que, hoje, o que invadiu
forçosamente minha janela e meus tímpanos não é nada de novo. A vizinhança --
será alguém da terceira idade? -- achou de tirar do baú as canções
imortalizadas por Altemar Dutra, Francisco Alves, Nelson
Gonçalves, Sérgio Bittencourt, Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Herivelto
Martins, Waldick Soriano e todo o pessoal da mais profunda fossa romântica...
♩♫♪♫ Sentimental eu sou, eu sou demais... ♫♪ Que queres tu de
mim?... ♫♪ Aquele amor que
sonhei... ♫♪ Boemia, aqui me tens
de regresso... ♫♪ De noite, eu rondo a
cidade a te procurar, sem encontrar... Volto pra casa abatida, desenganada da
vida... ♫♪ Índia, teus cabelos... ♫♪ Cinderela eu sou...
Cinderela, menina moça, coração a palpitar, que o seu príncipe encantado vai chegar... ♫♪ Adeus, amor, eu vou
partir, ah, eu vou-me embora... você cortou o barato do meu amor, você mentiu,
iludiu e me deixou por fora... ♫♪ Velho, meu querido
velho... ♫♪ Hoje, que a noite
está calma e que minh'alma esperava por ti... Volta, fica comigo, só mais uma noite... ♫♪ Alguém me disse que tu amas novamente... ♫♪ De que é feito afinal esse meu coração?♩♫♪♫
Tudo bem que, nessa época, nem tão
distante assim, a música brasileira produzia uma seresta de responsa. Mas, uma
coisa há de ser dita: esse playlist era quase como pedir uma dose certeira de
cicuta para aplacar a dor no coração de um ser que padece de amor. Ô povo que
sofre, meu Deus!
Capa do álbum de Francisco Alves, "O cantor eclético". Qualquer semelhança não é mera coincidência.
(Imagino que, neste momento, aquele
que conhece os supracitados e verdadeiros artistas da fossa estará se
perguntando numa epifania reveladora: quem é Pablo na tabela periódica da
paixão?)
Já tive, inclusive, meus momentos de
ouvir Dolores Duran, Nana Caymmi e Maria Bethânia para aplainar dor de
amores. Não vou mentir que, se por acaso houvesse uma cervejinha e se alguns
amigos (eles sabem quem são) estivessem em minha casa, poderíamos compartilhar
da dor do vizinho, rir, chorar e sofrer juntos, reclamar aos ventos sobre a
vida e o mundo, tudo isso sem ter que recorrer ao Facebook para postar
piadas, revoltas, indiretas e outras mesmices.
Para mim, o ponto positivo ao
escutar as letras das composições tocadas é poder perceber que, na arte de
lidar com a dor, não falta criatividade e assunto na música brasileira. No
entanto, o ponto negativo é que, recortando um trecho do rei Roberto
Carlos, "todos estão surdos", porque ainda falta ao ouvinte
aprender a abaixar o volume no dial. Pois, nessa hora, quem
acaba sofrendo mais sou eu...